Resenha | Serpentário, Felipe Castilho

Minha relação com Felipe Castilho começou com o pé direito, através de Ordem Vermelha: Filhos da Degradação, um livro que possui uma construção de mundo impecável. Sabendo do seu potencial, é natural criar uma certa expectativa elevada quando se trata de outros livros seu. Mesmo assim, Serpentário conseguiu me surpreender bastante, principalmente pela escrita de Castilho, que está ainda mais madura.

Às vésperas do reveillon, Caroline acaba de perder o emprego e está em um ônibus rumo ao litoral de São Paulo. Sua mente está dividida entre as frustrações do presente e uma tragédia do passado. Na adolescência, Caroline sempre passava as férias ao lado de seus amigos no litoral. Assim como ela, Mariana e Hélio também deixavam a capital paulista para irem para a praia. Para completar, eles encontravam Paulo, o caçula do grupo, que já morava por lá. Ao contrário de seus amigos, Paulo levava uma vida simples, sem luxo.

Nós acompanhamos a história através da visão de Caroline, que está decidida em terminar algo que começou há 19 anos atrás. No verão de 1999, algo não só abalou a amizade dela com seus amigos, mas também os transformou para sempre. Até os dias atuais, ela vive sequelas desse acontecimento, por isso precisa colocar um fim em tudo isso para finalmente seguir em frente, sem ter o seu passado sempre à espreita, rastejando atrás de si como uma serpente.

A pele de alguém é a armadura que protege sua alma. Juntas, alma e pele transmitem força através da linhagem. Linhagem é história, e histórias que se cruzam são fortalecidas e tendem a ser lembradas”.

Entre a narrativa do presente e o passado, também temos acesso a fragmentos de histórias que envolvem a Ilha das Cobras, o núcleo de diversos acontecimentos bizarros. E o mais interessante é que temos apenas vestígios delas, que podem se completar e fazer sentido no decorrer das páginas; ou não. Dessa forma, temos uma história não linear, onde presente e passado se entrelaçam e são apresentados aos poucos, criando assim, uma atmosfera de tensão e mistério.

A forma com que o autor escolheu conduzir a narrativa me lembrou bastante It, A Coisa, de Stephen King. Um acontecimento do passado marcou para sempre a vida de alguns jovens, que precisam retornar quando adultos para enfrentar um mal que os assombra até os dias atuais. No entanto, as semelhanças param por aí. Serpentário exibe uma mitologia singular muito bem estruturada, que intriga e ao mesmo tempo causa horror. Se antes eu não tinha, agora confesso que morro de medo de cobras, rs.

O ponto alto da história é a escrita de Felipe Castilho, que está ainda mais madura – redondinha. Eu me deleitei em diversos momentos com ela, que nos leva a lugares surpreendentes, tanto no campo descritivo quanto nas reflexões. Ele utiliza de diversas referências da cultura pop, mitologias e clássicos, tudo disposto com muita naturalidade, sem exageros. Ele também surpreendeu ao demonstrar sua versatilidade. Felipe manda bem tanto escrevendo fantasia épica, quanto suspence com boas pinceladas de terror. Fiquei ainda mais ansiosa para conhecer seus demais títulos, e claro, tudo o que está por vir.

Essa é uma história dignamente brasileira. Você se sente familiarizado com o ambiente e as situações. Além das referências, no qual já mencionei, o autor também insere críticas pertinentes a sociedade, principalmente com relação a política. Só quem está vivenciando de forma intensa a transição e os complexos acontecimentos atuais sabe do que estou falando, então me senti bastante representada.

O que faltou para o livro se tornar um favorito foi a minha conexão com os personagens. Apesar deles serem incrivelmente reais e cheios de camadas, não me apeguei e nem temi por eles. Caroline é nitidamente a líder da turma, mas faltou um pouco mais de carisma à ela. O personagem mais cativante foi Paulo, que ao contrário de Caroline, acho que tivemos muito pouco dele.

“Pois aquela raça, híbrida dos seus e dos outros, cultuava essa divindade que era o consumo. O excesso. O ter. Todos eram como serpentes mordendo a própria cauda e se alimentando da própria existência”.

Entretanto, nada disso apaga o brilho da obra. Me senti impactada em diversos momentos da trama, principalmente com o final, que sinceramente, ainda não sei se o entendi muito bem. Deu um nózinho na cabeça e senti a necessidade de reler (sem muito sucesso), mas ao mesmo tempo sinto que foi satisfatório. Esse é o livro ideal para ler e debater entre os amigos, porque acredito que cada um terá seu próprio entendimento com relação ao desfecho. Então, além de recomendar, peço que após ler, volte aqui e converse comigo. Boa leitura!

Exemplar cedido em parceria com a editora.


Serpentário

Título: Serpentário
Autor: Felipe Castilho
Editora: Intrínseca
Ano: 2019
Páginas: 368
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Sinopse: Todo ano, Caroline, Mariana e Hélio costumavam deixar a capital paulista para encontrar Paulo, um jovem habituado à simples vida caiçara. No entanto, a amizade construída nas areias do litoral sofreu abalos sísmicos no Réveillon de 1999, quando algo tão inquietante quanto o bug do milênio abriu caminho para uma misteriosa ilha que despontava no horizonte, e explorá-la talvez não tenha sido a melhor decisão.
Sobreviver à Ilha das Cobras tem um preço. O arquipélago é um ambiente hostil, tomado por víboras, e esconde segredos tão perturbadores quanto seus habitantes. Mais do que um equívoco darwiniano ou uma lenda popular, a ilha praticamente destruiu a vida deles. Entre memórias e fatos fragmentados, o que aconteceu naquela fatídica noite se tornou um mistério. Mas de algumas coisas eles se lembram perfeitamente: uma enorme e ameaçadora serpente, além de uma pessoa sendo entregue ao ninho da víbora, um sacrifício sem chance de recusa.
Anos depois, Caroline é confrontada com um de seus piores pesadelos: a pessoa que eles abandonaram está viva. Um fantasma do passado que surge para fazer suas certezas caírem por terra. Então, ela decide reunir os amigos para entender o que aconteceu. E talvez o encontro seja parte de algo maior… e maligno. Em Serpentário, Felipe Castilho mostra todo o seu talento ao mesclar referências do folclore e da mitologia a elementos da cultura pop, da ficção científica e do horror.

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One Comment

  1. Nilza Bonazzi

    Estou maravilhada!! É tudo muito lindo de se ver e de ler. Parabéns Gi, você vale ouro!!📕 😍

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