Resenha | Piano Mecânico, Kurt Vonnegut

Essa foi a minha segunda experiência com Kurt Vonnegut, e também, minha segunda chance com o autor. Em Matadouro Cinco, gostei muito da crítica que ele fez com relação às guerras, mas o mais interessante foi como ela me atingiu com intensidade apenas dias depois que eu finalizei o livro. A experiência, por outro lado, não foi a das melhores. Com Piano Mecânico, as coisas foram diferentes. Eu comecei muito mais engajada e interessada na história, mas a decepção veio no decorrer da leitura.

Após a terceira guerra mundial, temos um mundo dominado por gerentes, engenheiros e máquinas. À primeira vista, a situação não parece ruim. O sistema não é mais baseado em dinheiro e ninguém mais passa fome. Mas quando se olha com atenção para cada um dos lados, sente que as coisas não estão tão boas assim.

A sociedade é dividida por castas e a nova moeda de troca é a inteligência, cada um possui sua carteira de identificação, com direito a QI, capacidade intelectual e formação. Em Illium, a cidade é dividida entre os dois lados do rio. De um lado temos os privilegiados, gerentes e engenheiros que trabalham juntamente com as máquinas, fazendo as manutenções necessárias. Do outro, temos os excluídos do sistema. Se você não é inteligente o suficiente, suas únicas opções são o exército ou a Unidade de Reparação e Construção. Mas, quando se é mulher, há ainda menos opções: esposa. Mas daqui a pouco chegamos nessa questão.

Paul Proteus leva uma boa vida. Tem uma carreira brilhante que está em ascensão, uma casa magnífica e uma esposa dedicada, no qual ele ama. Tudo isso só é possível graças a sua inteligência, é claro. Ele está prestes a ganhar uma promoção no trabalho, mas a visita de seu amigo, Ed, coloca toda a sua convicção em cheque. Os dois fazem uma visita ao outro lado do rio, ou seja, ao outro lado de sua realidade, e isso faz com que ele enxergue que o sistema não é tão bom quanto parece.

O meu principal problema com a história, como vocês puderam pressentir, é a forma como o autor trata as mulheres nela. Fico surpresa e ao mesmo tempo triste de ver a capacidade com que certos autores conseguem vislumbrar o futuro, mas se prendem a certos valores ultrapassados, frutos de seu pensamento misógino.

As mulheres de Piano Mecânico possuem apenas a função de esposas, função também com prazo de validade, desde que sejam atenciosas, magras e bonitas. Também são completamente objetificadas, porque se o homem da casa não consegue um emprego, a única opção disponível para elas é a prostituição. Para não ser injusta, existe a secretária de Paul, mas o autor deixa claro que o cargo está extinto e Jaqueline é uma das últimas de sua função.

Tenho plena consciência do período em que o livro foi escrito, mas mesmo assim achei suas concepções ao papel da mulher atrasadas. Não foi por falta de tentativa, por mais que eu tentasse ignorar essa parte e focar na crítica que o autor coloca na história, ela me puxava toda hora para fora e eu não consegui absorvê-la como gostaria. 

“As pessoas estão achando que seus antigos valores valem cada vez menos, por causa da forma como as máquinas estão transformando o mundo.”

O tom sarcástico de Vonnegut não esconde que você está diante de uma situação satírica, principalmente quando observamos outro ponto de vista da história, a parte em que um Xá faz uma visita aos Estados Unidos e compara a vida dos indivíduos excluídos da sociedade aos de escravos. Entretanto, as principais críticas estão no imediatismo e na supervalorização das máquinas — no quanto elas são capazes de substituírem o trabalho feito por humanos, de forma rápida e eficaz.

Outro questionamento que o livro sugere é o quanto a elite se sobrepõe de forma esmagadora aos demais seres da sociedade. Paul foi capaz de perfurar sua bolha apenas porque ele — homem com mais de trinta anos, branco e privilegiado — estava infeliz. Só assim ele conseguiu ver a realidade como ela é, ou melhor, perceber aqueles que são apagados da sociedade, invisíveis. 

Como puderam perceber, o livro tem críticas significativas e atuais, o que faz jus ao autor. No entanto, muitas de suas críticas se perdem em meio a ideias conservadoras, não só que envelheceram mal, mas que já eram ultrapassadas no momento em que o livro foi publicado. Mesmo assim, recomendo você conhecer o autor e tentar filtrar as críticas relevantes de suas obras, no entanto, mesmo conseguindo captar algumas coisas, minha experiência com o autor termina aqui. 

Exemplar cedido em parceria com a editora.


Piano Mecânico

Título: Piano Mecânico
Autor: Kurt Vonnegut
Tradução: Daniel Pellizzari
Editora: Intrínseca
Ano: 2020
Páginas: 496
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Em um futuro não muito distante, pós uma nem tão distópica Terceira Guerra Mundial, as máquinas finalmente venceram. Quase tudo foi automatizado e logo a sociedade se dividiu sob um novo sistema de estratificação não mais baseado em dinheiro, mas sim em inteligência. De acordo com seu QI e capacidade intelectual, os indivíduos são classificados e registrados em um cartão perfurado e sua posição social ― um destino de glória ou esquecimento ― só pode ser definida a partir da análise desses dados.
Do lado dos privilegiados ― engenheiros e gerentes ― o doutor Paul Proteus leva uma vida confortável no alto escalão das Indústrias Illium, o maquinário que controla toda a vida da cidade homônima. Sua casa confortável, o prestígio entre os pares, a esposa atenciosa e dentro dos padrões: absolutamente tudo está em seu devido lugar e a ordem impera. A visita inesperada do inquieto e inconformado Ed Finnerty, um ex-colega de trabalho, promove um abalo sísmico em Paul e suas consequências, a princípio restritas à psique, logo se transformam em uma ameaça não apenas ao seu estilo de vida, mas ao de toda a estrutura que o cerca.
Quando atravessa o rio que divide a cidade e suas castas, Paul vê com os próprios olhos como é a vida de quem foi excluído do sistema. Mais do que uma crítica à automação e ao progresso desenfreado das tecnologias, Piano mecânico é um livro sobre o desconforto inerente que toda estrutura social causa ao homem moderno. Escrito logo após a publicação de 1984, livro pelo qual Vonnegut admitiu ter sido fortemente influenciado, a obra compartilha com Orwell a ansiedade do pós-guerra e o medo de que, em tempos de paz, as nações venham a se submeter a níveis potencialmente paranoicos de controle social.


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