Resenha | Cartas Para Martin, Nic Stone
Cartas para Martin é um livro sobre questões e reflexões. Um livro que não entrega as informações que você deseja, e talvez por consequência disso eu não consigo parar de pensar nele. Talvez eu também não consiga parar de pensar nele, porque hoje, no dia que começo a escrever esta resenha, seja 20 de novembro. O dia que se comemora a consciência negra no Brasil, mas será que comemorar não seria um termo irônico para descrever nossa atual situação? Vou deixar ele aí por enquanto.
Todos os dias, vivenciamos ou temos conhecimento de diversas situações injustas devido ao racismo, devido ao eco cruel que a escravidão proporcionou. No dia da consciência negra não foi diferente, mas ainda pior. Acordamos com uma notícia de que João Alberto, um homem preto de 40 anos, foi espancado até a morte por seguranças de um dos supermercados do Carrefour em Porto Alegre.
Tentei me distanciar dessa notícia e não agrega-la nesta resenha, mas não consegui. Porque Cartas para Martin é um livro que mostra o verdadeiro assassino de João Alberto: o racismo estrutural. Não é incomum escutar de pessoas que o racismo já não existe, que o racismo é pretexto para vitimização, então nos perguntamos como elas são capazes de ignorar tanta desigualdade e acontecimentos brutais como o de ontem, se tudo é tão claro?
Em Cartaz para Martin, conhecemos um jovem chamado Justyce a partir de um acontecimento que transformou sua juventude. Tentando ajudar a sua ex-namorada a voltar para casa, por estar bêbada e com dificuldades de dirigir, um policial o agride e o prende sem nenhum questionamento, apenas supondo que ele tentava abusar de uma garota. Não preciso pedir para que adivinhem a cor da pele de Justyce, porque do contrário, isso jamais teria acontecido com ele.
“Sei que você prefere ignorar tudo isso porque se beneficia do tratamento desigual, mas o problema não vai desaparecer se você sair por aí fingindo que está tudo lindo, Jared”.
A partir disso, Justyce ganha uma nova lente para o mundo e começa a enxergar coisas que no fundo sempre o incomodaram, mas que ele não dava tanta atenção. As piadinhas racistas dos amigos, as injustiças do cotidiano. Justyce também passou a ter medo e deixar algumas lutas de lado, porque ele sabe que qualquer mal entendido poderia ser fatal. Qual a melhor forma de agir diante de tudo isso? Ele tenta encontrar uma saída escrevendo cartas para Martin Luther King, porque deseja ser como ele.
Cartas para Martin é um livro bastante juvenil, que mostra as dificuldades que um adolescente sofre. As preocupações com o futuro, os sentimentos conflituosos com relação as garotas. Mas na pele de Justyce, há muito mais em jogo. Apesar de não viver a mesma realidade que ele, consegui me ver diante de muitos de seus pensamentos confusos, tentando compreender e encontrar respostas para a sociedade.
Uma vez que você enxerga a realidade desigual e cruel, é um caminho sem volta, por mais que você já tenha sentido tudo isso na pele antes. A sociedade nega tanto o racismo e normaliza atitudes que são coniventes dele, que essa percepção demora para chegar. Às vezes, ela nem chega. Entretanto, Justyce foi obrigado a sentir de forma brusca, sendo uma vítima violenta dela.
“É preto levando bala a torto e a direito, não pode nem levar uma bala ou um celular no bolso. Imagina o que teria acontecido comigo se eu estivesse com o celular marcando a roupa naquela noite? Eu podia estar morto. Por que tudo isso?”
O livro é forte e nos deixa com aquele famoso nó na garganta em diversos momentos. Acredito que faltou aprofundamento em diversas questões muito importantes, mas também compreendi que a proposta do livro é questionar e gerar empatia. Fico imaginando o livro chegando nas mãos de jovens como Justyce e como eles se sentiriam representados, porque não estão sozinhos com as suas confusões e dúvidas.
A história também ganha alguns rumos que poderiam ser mais bem explorados ou esquadrinhados, mas a mensagem principal foi passada, e por consequência disso o livro se torna essencial nos dias atuais. Um livro como esse nas mãos certas, de jovens ou discutido em escolas poderia gerar reflexões muito necessárias e poderosas, gerar inclusive a tal percepção sobre a sociedade.
“Por que os negros estão sempre com tanta raiva?? Como eu posso não ter raiva?”
Por tudo o que Justyce passa durante a narrativa, as dores e as perdas, ele também aprende a resistir. Portanto, mesmo que a data neste ano tenha sido dolorosa e amarga, há sim motivo para comemorar. A consciência negra, entre tantas e outras coisas nos traz percepção. Visibilidade, força e resistência. Ela nos traz inúmeras histórias, entre elas a de Justyce, no qual tantos jovens podem se identificar, refletir e questionar.
Exemplar cedido em parceria com a editora.
Título: Cartas para Martin
Autor: Nic Stone
Tradução: Thaís Paiva
Editora: Intrínseca
Ano: 2020
Páginas: 256
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Sinopse: Justyce McAllister é um garoto de dezessete anos com um futuro brilhante pela frente. É um dos melhores alunos de uma prestigiada escola de Atlanta, tem uma mãe amorosa e um melhor amigo incrível. No entanto, um episódio de violência policial traz à tona que a distância entre ele e seu futuro é quase um abismo. Porque Justyce McAllister é negro, e isso significa que, muitas vezes, é julgado pela cor de sua pele.
Ao ser agredido e detido injustamente, o olhar de Justyce desperta para um novo mundo, um lugar solitário em uma sociedade que insiste em vê-lo como ameaça ou como promessa de fracasso. Ele se dá conta, então, de que não pode mais fingir que não tem nada errado e decide iniciar um projeto: escrever cartas para Martin Luther King Jr., um dos mais importantes ativistas políticos pelos direitos dos negros, símbolo da luta contra a segregação racial nos Estados Unidos, morto em 1968.
Ao tentar aplicar os ensinamentos de Luther King em sua vida, Justyce começa a trilhar um caminho para entender não só como deve reagir diante das injustiças, mas que tipo de pessoa ele quer ser. Em meio a questões familiares, desentendimentos com os amigos e complicações da vida amorosa, nas cartas ele expõe suas dúvidas, sua angústia, sua revolta e a percepção clara de que a sociedade não é tão igualitária quanto deveria.
No livro de estreia de Nic Stone, vemos Justyce passar pelos desafios da adolescência, amadurecer e encarar o racismo que tanto afeta sua existência. Comovente e extremamente necessário, Cartas para Martin é um relato sobre ser um jovem negro e sobre o direito inalienável de existir. Um livro impossível de ignorar.
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