Resenha | A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões, Louise O’Neill

Sou fã declarada dos filmes da Disney, então não é preciso muito para despertar o meu interesse quando o assunto é releituras de tais histórias. Ao saber do lançamento de A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões pela Darkside Books, além da edição (que merece um tópico só para enaltecê-la), saber que o livro de Louise O’neill traria a história sob um viés feminista me deixou ainda mais empolgada para conhecê-la.

Antes de mais nada e para fazer um pouco de suspense, preciso dizer que a história não foi nada do que eu esperava. Ela foi além em alguns aspectos, me surpreendeu na forma de apresentar suas críticas, mas também ficou devendo em determinados pontos. Mas vamos lá, pretendo colocar aqui tudo o que senti durante a leitura, e confesso que não foi pouca coisa.

Mais de 70% da superfície da Terra é composta por água. O oceano é imenso e possui diversos seres vivos, mas temos conhecimento de menos do que 10% de sua totalidade. Ou seja, não fazemos ideia do que realmente acontece nas profundezas. Na nossa história, temos uma superfície semelhante, onde tudo parece calmo, mas há todo um universo de seres mágicos vivendo lá embaixo. Já está empolgado? Lamento desapontar, mas não se deixe levar pelas aparências. Ou melhor ainda, não se deixe enganar pelo reino das ilusões.

Em seu aniversário de 15 anos, a maior expectativa de Gaia é finalmente conhecer a superfície. Não que ela possua muitas outras expectativas, porque a vida de uma garota no mar não é fácil. Mesmo sendo filha do temido Rei dos Mares, Gaia sente na pele as dificuldades de nascer uma mulher. Há inúmeras regras para se comportar da maneira correta, como não falar muito, estar sempre bem arrumada, não sorrir demais, não ser curiosa e jamais, em circunstância alguma, interromper um homem quando ele está falando. Há, e não podemos esquecer do principal: a beleza.

“Vejo-os aplaudir minha beleza, como se ela fosse uma espécie de conquista.”

Neste quesito, Gaia é privilegiada. Como a mais nova entre as irmãs, ela se destaca por ser a mais bonita, e por consequência disso, também é a favorita do rei. A pequena sereia herdou não apenas a aparência exuberante e a bela voz de sua mãe, Muireann, mas também um estranho interesse pela superfície e seus moradores. Entretanto, as coisas não terminaram bem para Muireann. Ela desapareceu quando Gaia tinha apenas um ano, e embora nada se confirma, as histórias sobre seu paradeiro são as piores possíveis.

Ser a favorita do rei não garante à Gaia uma vida menos complicada do que a de suas irmãs, muito pelo contrário. Em pouco tempo ela irá se casar com o melhor guerreiro de seu pai, um homem que possui a idade para ser seu avô. Sem ter para onde fugir, Gaia deposita suas maiores expectativas na superfície, onde pode finalmente descobrir o paradeiro de Muireann. E é justamente lá onde ela avista o jovem e bonito Oliver, um garoto que ela acaba por salvar a vida e instantaneamente deposita seus sonhos e esperanças no breve sentimento que nutre por ele.

Grande parte da premissa nos é bastante familiar, mas a diferença está na estrutura da sociedade em que Gaia vive: uma realidade extremamente machista, que anula e silencia as mulheres, utilizando-as como mero objeto de luxo. A constante cobrança por beleza e obediência me deixou agoniada, então tudo o que mais desejei foi que as mulheres se unissem e se rebelassem contra o sistema.

“Os homens nunca são chamados de adoráveis. Eles são logo estimulados à maturidade. Ao passo que nós somos obrigadas a nos comportar como garotinhas quando adultas; emanando juventude em nosso vocabulário e em nossos gestos. É irônico, na verdade, sendo que passamos a infância nos esforçando para parecermos adultas antes do tempo.”

Apesar do instalove entre Gaia e Oliver ter me incomodado a princípio, acredito que ele se justificou depois através das consequências. Aliás, todos os pormenores que me deixaram desconfortável durante a leitura tiveram seus propósitos.  Louise O’Neill apresenta suas críticas de forma voraz, incomodando e cutucando a todo momento. O mais assustador de tudo isso é que não me senti surpresa, mas extremamente incomodada. As situações mais perturbadoras da história são meros reflexos da realidade em que vivemos.

A minha principal crítica negativa se diz respeito à empatia entre as mulheres, na ausência de sororidade. Por mais que estejamos falando de uma sociedade que incita a rivalidade entre as mulheres, eu esperei muito que uma união surgisse de forma natural entre elas. Não que isso não aconteça na história, mas eu desejei que estivesse presente desde o início.

“Há tantos tritões com medo de serem gentis. Eles temem seu verdadeiro eu, é uma tragédia. Pois o que acontece a homens que não têm permissão para sentir medo? Eles ficam com raiva. Rancorosos. Primitivos.”

Entre aspectos negativos e positivos, é inegável que a história se provou necessária. Ao perceber as semelhanças entre a minha realidade com a de Gaia e o quanto isso a prejudica, foi inevitável não sentir empatia. Me ver dentro dessa história, impotente e sem vós, me deu forças para continuar me impondo e conquistar tudo o que tenho direito. E automaticamente, é com essa mesma energia que torci para a personagem crescer e se libertar.

“Os homens não precisam ser bonitos . Fico pensando enquanto dançam. Eles não são afetados pelo peso das pérolas; seus movimentos são uma fração mais velozes do que o das sereias, seus membros relaxados. Livres.”

Tratando-se de Darkside Books, é um eufemismo dizer que a edição está magnífica. Por mais clichê que seja, preciso destacar o quanto eles se superaram neste livro, porque além da beleza, ele condiz perfeitamente com o conteúdo da história. Sua face ilude, porque é bonita e delicada, mas a verdade é completamente o oposto.

Ler este livro foi um choque entre a perspectiva e a realidade. Eu já esperava um reconto feminista, mas não imaginava uma história tão impactante e sombria. Também me enganei ao esperar uma leitura leve, porque estar na pele de Gaia beira o insuportável de tão doloroso, por isso recomendo que você se prepare antes de encarar essa leitura. Por mais difícil que seja, ela é indiscutivelmente necessária.

Exemplar cedido em parceria com a editora.


A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões

Título: A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões
Autora: Louise O’Neill
Tradução: Fernanda Lizardo
Editora: Darkside Books
Ano: 2019
Páginas: 224
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Sinopse: Em seu aniversário de quinze anos, quando finalmente sobe à superfície para conhecer o mundo de cima, Gaia avista um rapaz em um naufrágio e se convence de que precisa conhecê-lo. Mas do que ela precisa abrir mão para transformar seu sonho em realidade? E será que vale a pena?
Esqueça as histórias sobre sereias que você conhece. Esta é uma história diferente — e necessária. E tudo começa no fundo do mar. Com uma garota chamada Gaia, que sonha em ser livre de seu pai controlador, fugir de um casamento arranjado e descobrir o que realmente aconteceu à sua mãe desaparecida.
A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões chega para trazer um pouco mais de contos de fadas para a linha DarkLove, da DarkSide® Books. Mas não do jeito que você espera; aqui, a história original de Hans Christian Andersen — e também suas versões coloridas e afáveis em desenhos animados — é reimaginada através de lentes feministas e ambientada em um mundo aquático em que mulheres são silenciadas diariamente — um mundo que não difere tanto assim da sociedade em que vivemos.
No reino de ilusões comandado pelo Rei dos Mares, as sereias não recebem educação, não têm direito de fala, devem se encaixar em um padrão de beleza impossível e sempre sorrir. É neste cenário que a autora irlandesa Louise O’Neill apresenta uma história sobre empoderamento e força feminina. Com narrativa e olhar afiados, a autora ainda desenvolve aspectos do conto original que passaram batido, como o relacionamento de Gaia com as irmãs e as camadas complexas da Bruxa do Mar.
A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões, que chega ao mundo acima da superfície da água com o padrão de qualidade que virou marca registrada da DarkSide® Books, mostra como, em um reino comandado pelo patriarcado, ter uma voz é arriscado. Mas também como querer usá-la é uma atitude extremamente poderosa e valiosa. Ainda mais em tempos tão sombrios.


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5 Comments

  1. Isadora Santos

    Eu acabei de ler uma outra resenha sua e fiquei boquiaberta.

    E agora essa também me pegou mais uma vez de calças curtas.
    Já enalteci sua escrita hoje? Porque se não, me desculpe! Sua escrita é incrível, suas resenhas cativam , adoçam, amargam e o mais importante são sinceras e leais!

    Quero falar que amei a premissa do livro e como você mesma disse a Dark side sempre acerta né! As edições são lindas e surpreendem nós meros leitores.

    Mais uma vez digo aqui. Bravo!

  2. Viviane Ferreira Oliveira

    Tenho visto ótimos elogios a essa obra e sua resenha reforça a ideia de que é uma obra muito bem pensada e que veio para levantar todas as questões machistas que permeiam a sociedade.
    A questão do apoiar outras mulheres tb precisa ser discutido e tenho esperanças que um dia as mulheres se ajudem mais e sejam menos competitivas entre si, pq infelizmente, essa competição boba acaba sendo um dos grandes inimigos das mulheres

    osenhordoslivrosblog.wordpress.com

  3. Jessica Rabelo

    Oi Gih.
    Parece que a palavra do momento é sororidade né? Adoro ver como os livros buscam trabalhar isso e mesmo sendo algo pequeno nesse livro, não de começo, achei bem legal a ideia da obra na força feminina.
    Realmente parece ser um livro formidável.
    Obrigado pela dica.
    Beijos.
    Fantástica Ficção

  4. Eloise

    Oi Gisele,

    Quando comecei a ler a resenha percebi que havia muitas similaridades com a história que já conheço, mas que justamente a estrutura da sociedade era diferente (como você mencionou acima), e concordo com você, acredito que essa parte deve ser a que incomoda e que nos cutuca, pelo fato de compararmos com que acontece em nossa realidade. Nem preciso dizer o quanto amei sua resenha, já queria ler e fiquei ainda mais empolgada. A DarkSide adora se superar né, essa capa é realmente maravilhosa. Eu adoro contrastes, então achei bem interessante essa proposta deles de desenvolver uma capa tão bela com um conteúdo mais pesado e sombrio.

    Necessito!
    Bjokas da Elo!
    http://cronicasdeeloise.blogspot.com/

  5. Jessica

    Oi Gih.
    Diferente de você não acredito que a falta de união entre as mulheres poderia me causar qualquer tipo de incomodo. Socialmente falando é muito difícil que nós mulheres fiquemos unidas, principalmente no início das eras quando não tínhamos o feminismo para nos ajudar a enxergar. Com a politização do mundo ficamos mais unidas, então acredito que as mulheres desse livro apenas não tenham algo que lhe abra os olhos.
    Entretanto, o romance instantâneo também me incomodaria. Faço a linha “construam esse casal”.
    Beijos.
    Blog: Fantástica Ficção

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